sábado, 15 de agosto de 2009

Serviço Social A Mutilação Genital Feminina


Mutilação Genital Feminina

Intervenção do Prof. Jorge Cabral

Por ocasião da conferência de Mafalda Santos

no Forum de Santo António dos Capuchos


O meu louvor aos Promotores desta iniciativa, ao Cpihts e ao Forum de Santo António dos Capuchos.
Que eu tenha conhecimento é a primeira vez que em Portugal de uma forma pública e organizada, se pode debater tão complexo quanto dramático problema.
Pedem-me um comentário, e duvido que o façam só tendo em conta a minha qualidade de jurista. Certamente sabem que estive na Guiné-Bissau, que sou curioso. Que procurei conhecer e aprender, porque também eu adoptei o lema “Humani nihil alienum”, isto é, nada do que é humano me pode ser estranho.

Estamos em 2006, e só desde 2002 o assunto mereceu entre nós alguma atenção, mercê dos notáveis artigos de Sofia Branco. E no entanto, como tão bem acentuou na altura o Prof. Luís Graça, durante décadas e décadas os Portugueses conviveram com essa realidade. Médicos, Professores, Padres, Agentes da chamada Acção Psico-Social, artífices da Politica Spinolista da Guiné Melhor, conheceram a prática da Mutilação Genital Feminina.

Uma Guiné Melhor na qual metade das meninas era e continuou a ser violentamente mutilada, com a complacência de todos os representantes do Poder Colonial.
Claro que na Guiné-Colónia vigorava o Código Penal Português, o qual sempre puniu as ofensas corporais, designadamente as que ocasionassem “cortamento, privação, aleijão ou inabilitação de algum membro ou órgão do corpo”, cominando uma pena de prisão de 2 a 8 anos. Obviamente que nunca ninguém foi julgado pela prática da excisão.
Respeito pela cultura, tradições ou costumes do Povo? Ou desprezo? A realidade colonial dividia-nos entre nós e eles, e o “fanado” era festa deles, que não nos incomodava enquanto ocupantes.

Paradoxalmente porém, aplicávamos com rigor o Código Civil quanto ao registo das crianças, todas filhas ilegítimas, dado pai e mãe não serem casados segundo a Lei Portuguesa. Ia-se até mais longe obrigando as crianças fulas a possuírem um nome português, em geral o do Chefe do Posto, facto que eu descobri ao deparar numa aldeia com 32 Augustos (Augusto Idrissa Embaló, Augusto Demba Djaló, Augusto Mamadú Baldé… etc).

A mutilação genital feminina praticava-se no meu tempo e pratica-se hoje na Guiné-bissau e também, embora em reduzido número, em Portugal. Podemos, como a Mafalda fez, elencar as crenças ou razões que lhe são subjacentes, as quais servirão tão somente para mascarar o seu objectivo fundamental – o controlo da sexualidade feminina – um cinto de castidade sem chave e vitalício.
O problema deve pois ser enquadrado nos direitos da Mulher, direito ao Corpo, direito à Sexualidade, direito à Liberdade, direito à Dignidade. Porque o que está verdadeiramente em causa é o estatuto da Mulher. A mulher coisa, a mulher propriedade, a mulher comprada, a mulher serva.
Na guerra e na Guiné estive há muitos anos. Do que lá se passa hoje sobre Mutilação Genital Feminina, só disponho de algumas informações – as tentativas de criar um Fanado alternativo, que cumpra os ritos de iniciação sem mutilar, parece não ter dado o resultado esperado. Quanto às “fanatecas”, as mulheres que fazem profissão da excisão, bastantes entregaram as facas, acreditando que lhes seria atribuída uma pensão para sobreviverem, o que parece não ter acontecido.
Segundo creio a operação está a ocorrer em crianças cada vez mais novas, quase bebés, porque talvez a facilite, ou em virtude de as novas excisadoras não terem a perícia das de antigamente. Não creio que exista uma vontade política determinada em erradicar a mutilação genital feminina, num país em que o equilíbrio étnico é garante de uma sempre difícil estabilidade. Decretar pura e simplesmente a proibição iria sem duvida desagradar aos Islamizados, que constituem o grupo religioso maioritário na Guiné.
Acredito que, quando muito, as preocupações sejam de saúde pública, como se pode depreender do Código Penal da Guiné-Bissau, cujo art. 117º, que tem como epígrafe “Ofensas Privilegiadas”, diz o seguinte: “Quem habilitado para o efeito e devidamente autorizado, efectuar a circuncisão ou excisão sem proceder com cuidados adequados para evitar que se produzam os efeitos previstos no nº 1 do art.115º ou a morte da vitima, e estas sobrevierem, é punido com pena de prisão até 3 anos e de 1 a 5 anos”.

A leitura do preceito é elucidativa – o que se pune é a negligência na operação e não a própria mutilação genital feminina. Estamos no domínio da Medicalização, de que a Mafalda falou. Atenuam-se os riscos. A complexa cerimónia de iniciação transforma-se numa intervenção cirúrgica sem outro objectivo ou razão, senão cumprir o costume.
Aliás, e como sabem, durante o séc. XIX e até aos anos 30 do séc. XX, tanto nos E.U.A. como na Europa, a ablação do clítoris constituiu tratamento da histeria, da ninfomania e do lesbianismo. Terapêutica para bem delas, está bem de se ver…
Há mais de 20 anos, que nas minhas aulas falo da mutilação genital feminina e sempre a propósito da falta de consciência da ilicitude. A punição de alguém por um acto cometido implica a interiorização do ilícito da conduta praticada, que a pessoa sinta que o que fez está errado. A não ser assim, a aplicação da norma penal torna-se absurda e ineficaz. Por isso todo o esforço para banir ou erradicar determinado comportamento deve ser efectuado prioritariamente através de outros meios, de uma Política Social, de educação, de saúde de integração. O Direito Penal, não o esqueçamos, deve constituir uma “ultima ratio”.
Enraizada como crença, mito ou costume, será a Mutilação Genital Feminina um valor cultural a ser preservado? O respeito pela identidade cultural, deve tolher-nos na luta, contra práticas desumanas, atentatória da vida e da liberdade das pessoas?
Cada cultura encerra em si valores e desvalores. Não devemos deixar morrer os valores, mas devemos procurar extinguir os desvalores. De outra forma toleraríamos que as viúvas na Índia fossem enterradas vivas com os falecidos maridos, ou que os pais violassem as filhas obedecendo a um velho costume.

Creio que o impacto dos artigos da Sofia Branco, publicados no Jornal Público em 2002, se deve principalmente à informação de que a Mutilação Genital Feminina, ocorreria em Portugal.
Também pela Europa as preocupações aumentaram com a possibilidade da prática ser cá efectuada, dada a corrente migratória. Julgo porém, que toda a Mutilação Genital Feminina é igualmente grave, devendo ser denunciada e combatida, independentemente do lugar onde seja efectuada. A universalidade dos Direitos Humanos impõe-nos que sintamos toda a sua violação, como violação dos nossos direitos. A mutilação de uma menina no Sudão constitui uma ofensa à minha condição de homem livre, até porque a minha liberdade só pode ser assumida em plenitude, num Mundo de Homens e Mulheres Livres.

Em todos os nossos Códigos Penais, o de 1852, o de 1886, o de 1982 e o de 1995, a mutilação genital constitui o crime de ofensas à integridade física grave previsto e punível no actual art. 144º.
No projecto em Discussão, propõe-se ao artigo um acrescento, na alínea b). Assim onde agora se lê – “Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem”, passará a surgir “de procriação ou de fruição sexual”.
A proposta suscita-me algumas dúvidas. A mutilação já estava incluída quer na alínea a) “privá-lo de um importante órgão ou membro” e até na própria b) “afectar-lhe a possibilidade de utilizar o corpo”. A questão é porém outra. Deve a mutilação feminina, ser incriminada autonomamente, tipificando a conduta?
Se a resposta for positiva então terá de ser enquadrado o novo tipo, nos crimes contra a Liberdade Sexual, definindo com rigor o comportamento. Para tanto, tornar-se-á necessário que os nossos legisladores conheçam o problema.
Infelizmente, a nossa politica criminal parece ditada pelos media. Se amanhã os jornais relatarem um caso de canibalismo, logo surgirá uma proposta de criminalização, como aconteceu com a venda de bebés, que evidentemente já estava integrada no crime de escravidão.

Desculpem toda esta desalinhada exposição. Penso que indiciei o que penso sobre a temática em debate. – Atentado contra as crianças, coisificação da mulher, abominável violação da dignidade, deve ser encarado na óptica dos Direitos Humanos.
Estudado multidisciplinarmente, urge o seu combate no terreno, pelos diversos técnicos que conheçam e lidem com a situação. Técnicos de saúde, interventores sociais e todos os que trabalham com a Imigração, terão um papel fundamental pela persuasão, educação e aconselhamento.
A repressão só por si nada resolverá! Antes pelo contrário, aumentará o secretismo ou determinará as famílias a levarem as crianças à Guiné para sofrerem a Mutilação. Por outro lado, ao actuarmos aqui em Portugal, chamando a atenção para o criminoso da conduta, estaremos a colaborar na luta também lá, pois os imigrantes transmitirão a mensagem.
Vai sendo tempo de terminar. Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, como diz o Poema.
É legítima a nossa indignação. Não chega porem indignar-nos.
Habitamos o mesmo mundo e pertencemos à mesma raça – a Raça Humana.
Não somos nós e os outros, Somos todos Nós!
Lutar contra esta prática, constitui dever de cada um de nós, porque é nossa obrigação contribuir para um Futuro mais livre, fraterno e solidário.

Muito Obrigado.
Jorge Cabral

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